ARISTÓTELES – Ética a Nicômaco, Livro III

1) Aristóteles, agora aborda as possíveis diferenças entre as ações voluntárias e as involuntárias, estas últimas caracterizando aquelas ações que ocorrem ‘sob compulsão ou por ignorância’. Sem dúvida há muitas situações práticas nas quais nos encontramos envolvidos, que por ignorância ou contingência, as praticamos involuntariamente, p.ex. deixar de pagar uma dívida por falta de dinheiro, pressão de necessidades fisiológicas, descarte de um bem por incapacidade de mantê-lo, etc.

São situações forçadas, não-voluntárias (por ignorância) ou involuntárias (por produzirem efeitos de dor ou arrependimento)..

Depreende-se, portanto, que a prática de atos involuntários envolve a existência de um contexto desfavorável que faz surgir o ilícito, no qual resulta uma responsabilidade apenas contingenciada pelas circunstâncias, das quais todos nós em alguma ocasião podemos estar submetidos. Ora, isto implica uma predisposição de caráter superior, privilégio apenas de pessoas dotadas de heroísmo ético, que sabem superar os constrangimentos.

2) A escolha parece ser voluntária, mas não se identifica com o voluntário, pois a escolha envolve um princípio racional e o pensamento. Reciprocamente, nem tudo que é voluntário parece ser objeto de escolha, como nosso desejo de imortalidade.

3) Onde ficam então nossas deliberações? Deliberamos sobre as coisas que estão ao nosso alcance e podem ser realizadas. Porém, nem tudo pode ser objeto de nossas deliberações, por estarem além de nosso arbítrio, como a veracidade das leis naturais, a certeza dos números, etc. Por outro lado, as deliberações guardam estreita relação com as investigações, mas nem toda investigação é deliberação.

4) Ora, deliberamos afim de obter o melhor bem em cada situação, pois em princípio ninguém deseja o que é mau .Para aqueles que escolhem fazer o mal, isto ocorre por não perceberem a verdade inerente a cada ato.

5) Nossa liberdade nos capacita sermos vis ou virtuosos, bons ou maus. Para tanto, temos que escolher os meios e estabelecer o que queremos alcançar, ou seja, os fins de nossos atos.

Se muitas vezes os fins não estão claros, a virtude as resumirá na consciência dos meios. Por isso, estamos diante dedisposições de caráter, que escolhem os meios a partir de nossas próprias tendências.

6) Este item nos fala do medo e da confiança, cujo meio-termo é a coragem. Para nós, as coisas que tememos as consideramos como males, como a doença, o infortúnio e a morte. O bravo ou destemido é o que enfrenta os perigos com valentia.

7) A covardia, a temeridade e a bravura estão todas relacionadas com a coragem. Se as duas primeiras pecam por falta ou por excesso, a bravura é sua posição mediana.

8) Espécies de coragem. Aristóteles nos descreve cinco:

  • a coragem do cidadão-soldado: convocado para o combate, fica a mercê dos infortúnios e das glórias que as guerras oportunizam.
  • a coragem oriunda do conhecimento (Sócrates), quando este é desafiado pelos perigos e paradoxos da existência.
  • a coragem existente nos apaixonados, quando comumente esses se lançam no destemor das conquistas.
  • a coragem proveniente do otimismo, pela confiança na obtenção dos resultados.
  • a coragem proveniente da ignorância dos perigos.

9) A coragem está mais relacionada ao medo que à confiança. Nisto, preponderante é o medo da dor.

10) A temperança: é um meio-termo em relação aos prazeres. Estes podem ser corporais e espirituais. Àqueles que gostam dos prazeres da alma não podemos chama-los temperantes ou intemperantes. Deixar-se dominar pelas intemperanças é próprio dos brutos.

11) O intemperante almeja tosas as coisas agradáveis ou as que mais o são, e é levado pelo seu apetite a escolhê-las a qualquer custo. Muitos sofrem por não obtê-las.

12) A intemperança é mais voluntária que a covardia, pois se esta foge da dor, aquela só procura o prazer. As crianças poderão ser vítimas da intemperança, se não forem educadas a controlar seus apetites. Em conclusão deverá sempre haver um princípio racional a guiar nossas tendências.

ARISTÓTELES – Ética a Nicômaco, Livro II

1) A virtude se diz intelectual e moral. A primeira se desenvolve através do ensino, exigindo longo percurso; já a virtude moral depende do hábito (ethos), conforme a etimologia da própria palavra.

Ressalta-se que as virtudes intelectuais ou morais não são produto da Natureza, cujas leis são determinísticas. Ora, nós somos produtos da Natureza, o que implica considerarmos que somos adaptados pela Natureza a desenvolvê-las.

As virtudes não são como os sentidos, que possuímos antes de usá-los, pois só as adquirimos pelo uso reiterado das práticas virtuosas, que nos tornam melhores.

2) Trata-se aqui de estabelecer a prática das virtudes dentro do princípio de uma regra justa, pois, quando se trata de condutas, a obtenção do bem a partir de suas práticas, não possui nenhuma fixidez. Tudo se torna apenas aproximado. demandando prudência e moderação para que não venhamos a praticar excessos. Pois, tanto a deficiência como o excesso de zelo, destroem a força da sua eficácia. Assim, nossa saúde depende apenas de uma quantidade e variedade adequada de alimentos, o mesmo ocorrendo com a temperança, a coragem e outras virtudes que, se não bem controladas, não fortalecem a desenvoltura progressiva de nossas condutas.

3) Importa ter em mente que nossa excelência moral está em relação direta com os prazeres e dores que sentimos (Heráclito). Pois se o prazer nos causa alegria, nossa tendência será procurá-lo, evitando o mal que ele possa nos causar. Como disse Platão, aqui é o lugar de uma boa educação, que ensine os limites virtuosos de nossas sensações.

4) A virtude depende essencialmente da prática costumeira. Não basta conhecer as virtudes pela filosofia, pois não de trata de saber, mas sim de agir.

5) Em nossa alma há três espécies de coisas: faculdades, paixões e disposições de caráter. A virtude deve pertencer a uma destas.

A virtude não está entre as faculdades, pois estas são apenas disposições para sentir as paixões; também não está nas paixões, que são apenas reações segundo o nosso caráter; as virtudes estão, portanto, em nossas disposições de caráter, como qualidades de nosso eu para concretizá-las.

6) As disposições de caráter dependem não só de nossas aptidões biológicas, como também da forma com que as utilizamos.

Essas disposições de caráter não se situam nos excessos, mas sim no meio-termo que os contrabalança. É uma sabedoria prática, que foge do vício e dos extremos. Porém, o meio-termo deverá estar sempre voltado para o bem, não para o mal.

7) Ressalte-se que a virtude é sempre uma prática individual, não genérica. Por isso, ela é bem concreta, quando se refere à conduta de cada um. Assim:

  • entre o medo e a confiança, a coragem é o meio-termo
  • entre a audácia e a covardia, a cautela
  • entre o prazer e a dor, a temperança
  • entre a prodigalidade e a avareza, a liberalidade
  • entre a honra e a vergonha, o justo orgulho
  • entre a cólera e a apatia, a calma
  • entre o verdadeiro e o falso, a verossimilhança
  • entre o aprazível e o detestável, a espirituosidade
  • entre a inveja e o despeito, a justa indignação

8) As disposições de nossas virtudes muitas vezes jogam um jogo duplo em relação aos seus excessos, ora mais próximos, ora mais distantes de suas afinidades. Com efeito, o bravo parece atrevido aos olhos do covarde e aquele, por sua vez, olha o covarde como carente de valentia; assim também, o liberal parece pródigo em relação ao avaro e avaro em relação ao pródigo. Por isso, as pessoas que estão nos extremos, tendem a exagerar o meio-termo.

9) Em conclusão, a virtude moral é um meio-termo, obtido pela negação de excesso. Assim, difícil se torna sermos bons, pelo fato de ser difícil encontrarmos o meio-termo. Na dúvida, sempre preferir o mal menor e o prazer e a dor podem ser bons indicadores desse meio-termo virtuoso.

MAURICE MERLEAU-PONTY – Conversas: 1948

O mundo percebido e o mundo da ciência

O mundo que percebemos e que nos parece o mais evidente não passa de uma falsa aparência. De fato, depois dos esforços da ciência moderna, chegou-se à conclusão de que, sob os fenômenos mais corriqueiros, repousa um emaranhado de corpúsculos e ondas eletro-magnéticas de alta complexidade. Isto demonstra que o ser humano, se quiser compreender a realidade, deve remontar às tarefas de suas pesquisas e de sua inteligência (DESCARTES).

Contudo, basta a ciência para explicar todas as coisas? Não, na medida em que as teorias científicas nos oferecem apenas cifras da realidade, não esgotando seus mistérios. Dessa forma, continuam válidos os esforços dos crentes, dos artistas e dos poetas, em seus misteres para, de maneira própria, também expressarem as múltiplas facetas da realidade, como eles a vêem.

Exploração do mundo percebido – O Espaço

O pensamento moderno inverte o senso comum clássico de investigação das coisas e para dar só um exemplo, o espaço não é mais entendido como lugar estático em que se situam os objetos, mas, pela teorias atuais, a forma e o conteúdo dos objetos interage com o espaço circundante. Isto se confirma também através da pintura moderna (Cézanne), na qual forma, conteúdo e colorido se dão simultaneamente. Sentir o espaço com o coração, eis a perspectiva pontual da cultura moderna!

Exploração do mundo percebido – As coisas sensíveis

Cada coisa percebida é um sistema de qualidades oferecidas aos diferentes sentidos e reunidas por um ato de síntese intelectual. É assim, p.ex, que a percepção do limão é o conjunto de forma, cor, sabor e reação que as diferentes qualidades exercem sobre nosso subconsciente. Na continuidade, cada qualidade sensível dá origem a diferentes reações analógicas, o que dá origem à diferentes espécies de percepções (virtuais, possíveis ou simplesmente imaginárias).

Exploração do mundo percebido – A animalidade

A diferença entre a percepção clássica do mundo que nos cerca e a moderna consiste no envolvimento do olhar humano, dando forma peculiar a tudo que se percebe. Ora, isto significa dar uma atenção especial à forma com que os primitivos, as crianças, os loucos e os doentes vêem a sua realidade. Superando uma atitude clássica de indiferença com os ‘anormais’, percebe-se que o preconceito contra eles é apenas superficial, na medida em que há diferentes formas de captação da realidade, todas válidas, a partir de cada percepção engajada em seu habitat.

É dessa forma então que qualquer fenômeno físico pode passar a ser considerado como ‘vital’, pelas impressões mutantes que lhe podem ser agregadas.

O Homem visto de Fora

O dualismo cartesiano dividiu o ser humano em duas realidades distintas, o corpo e o pensamento, sendo este considerado autônomo e espiritual. Contudo, suas relações são próximas, havendo entre eles uma interação recíproca, pois, em qualquer manifestação (vg a raiva), a reação é corporal, mas sua realidade é, na verdade, pensamento (consciência).

Ainda mais, a consciência de nós mesmos só surge depois de termo-la vivenciada com os outros! O bebê, vendo as reações dos outros, toma consciência de si mesmo. Ora, isto nos impõe o fato de que nosso espírito é tributário do ambiente que o cerca, só se realizando na consonância de suas relações externas. Por conseqüência, não havendo indivíduos ou pessoas isoladas de seu ambiente, nosso papel deve ser o desempenhar um trabalho conjunto pela superação dos eternos problemas que afligem os seres humanos isolados.

A Arte e o Mundo Percebido

O que aprendemos de fato ao considerar o mundo da percepção? Aprendemos que nesse mundo é impossível separar as coisas de sua maneira de aparecer. Isto ocorre preeminentemente com a arte, cuja figuração só pode ser compreendida se for vista considerando a totalidade de seus detalhes ou aspectos.

Dessa forma a arte deve ser olhada não apenas como um conjunto de detalhes, mas como um conjunto que lhe dá sentido como ‘fato pictural’. É, então um mundo por si mesmo, original e irrepetível. O mesmo ocorre com a literatura, a poesia, a música.

Mundo Clássico e Mundo Moderno

Estamos, pois, diante de duas perspectivas de conhecimento: de um lado, uma razão esclarecida que não duvida de seu poder de esgotar todos os mistérios; de outro, um conhecimento incerto e subtil que nos vem do reconhecimento do valor da arte, do subjetivo, do mito, da crença. De um lado o dogmatismo, do outro a ambigüidade e a incompletude.

É dessa forma que o mundo moderno é sempre aquele das coisas inacabadas, perdido na variação semântica das palavras. Não obstante, tal problema também afetou a cultura clássica, como nos dão exemplo Leonardo da Vinci, Balzac, como se fosse da própria natureza da verdade o revelar-se homeopaticamente, por gotas e insinuações.

MAURICE MERLEAU-PONTY – Einstein e a Crise da Razão

Maurice MERLEAU-PONTY, pensador francês falecido em 1961, em um resumo sobre Einstein e seus dilemas intelectuais como cientista, nos brinda com uma bela digressão filosófica sobre a crise da razão clássica, como sempre fora entendida pela grande maioria dos pensadores, desde os gregos. As ideias principais estão assim formuladas:

Às pretensões de hegemonia da razão para resolver os problemas do mundo, ao tempo e modo de Augusto Comte (sec XIX), sucedeu-se um momento de crise da razão científica, com o aparecimento da teoria da relatividade de Einstein (sec XX), que subverteu as formas tradicionais de considerar muitos fenômenos, como aqueles relativos ao tempo e ao espaço.

Contudo, Einstein parece manter ainda sua confiança na ciência clássica, ao afirmar: “Acredito num mundo em si, mundo regido por leis que tento apreender de uma maneira selvagemente especulativa”. Porém, Einstein reluta em aceitar uma harmonia preestabelecida, à maneira cartesiana, ou mesmo uma visão idealista à moda platônica, preferindo mais referir-se a um Deus como o de Spinoza, onde há mistério e religiosidade cósmica:“a coisa menos compreensível do mundo, dizia ele, é que o mundo seja compreensível”.

Einstein assim coloca a física clássica em seu limite crítico, relutando em aceitar os argumentos da física ondulatória, que joga com um mundo apenas de probabilidades: “Todavia, acrescentava ele, não posso invocar nenhum argumento lógico para defender minhas convicções, a não ser meu dedinho, única e fraca testemunha de uma opinião profundamente arraigada na minha pele”.Seu dedinho era o sinal patético de sua indecisão entre o fracasso da ciência clássica e o mistério de suas especulações sobre um Deus ‘sofisticado ou refinado’.

Eis que então a notoriedade de Einstein dá o que falar. Sua glória é como um cumprir a vontade dos deuses, o momento de uma crise da razão que transforma os sábios em taumaturgos.

Contudo, o fato principal a reconhecer é esta capacidade humana de falar e calcular, criando algoritmos e linguagens, num processo simbólico que não perde os vínculos com a realidade experimental. Não obstante ainda não possuímos uma teoria rigorosa do simbolismo. Depois disso, tudo passa a ser magia e ocultismo.

Em discussão com Einstein sobre o problema dos tempos múltiplos, aqueles referidos a diferentes observadores, Bergson propõe a distinção entre verdades físicas e verdades naturais, enfatizando a realidade sui generis de seu tempo duração. Pois esta intuição original é o pressuposto nas próprias teorias físicas! Portanto, há sempre que distinguir entre o mundo imediato de nossas percepções e o mundo sofisticado das fórmulas matemáticas.

Que iria responder Einstein? Que o tempo do filósofo não é diferente daquele pesquisado pelo físico, porém, mesmo que haja uma noção intuitiva do simultâneo, só à ciência compete constatar sua percepção relativa, quando referido a grandes distâncias. Não obstante, convém assinalar que esta percepção relativa do tempo, quando ensina que meu presente é simultâneo ao futuro de um outro observador bastante afastado de mim, arruína o próprio sentido do futuro…

Ora, na medida em que Einstein sustenta a validade da expressão matemática como dirigida ao real, fica preso a um paradoxo que ele nunca desejou, mas não soube como superar. Por isso, o vigor da razão está ligado ao renascimento de um sentido filosófico que, certamente, justifica a expressão científica do mundo, porém em sua ordem, em seu devido lugar no todo do mundo humano, conclui Merleau-Ponty.

PLATÃO – A República

república (em grego politeia) é o diálogo mais célebre de Platão, o mais lido e o mais comentado ao longo da história. Platão queria resolver o problema de seu tempo. Como impedir que a cidade, que não vivia mais numa tradição por todos aceita e que submetia todas as disputas ao princípio da discussão, não naufragasse na anarquia dos interesses particulares e da dispersão? Como salvar a cidade da confusão em que estava imersa, chegando a ponto de condenar à morte aquele que tinha sido o farol da verdade nas discussões, ou seja, Sócrates?

República contém diversos temas filosóficos, sociais e políticos entrelaçados. A questão chave é a da justiça em seu sentido amplo, oportunidade que Platão aproveita para tecer comentários sobre a educação e o tema genérico do conhecimento das coisas. O livro I goza de uma certa independência, sendo que os demais (ao todo são X), se dispersam em temas variados: A formação das lideranças (os guardiões), nos livros II, III, IV e V. A formação dos governantes, classe especial dos guardiões, nos livros VI e VII. Uma vez compreendida a tarefa pública, Platão a compara com o que acontece nas cidades existentes (livro VIII). Diante do desafio de Trasímaco ao tratar das conveniências da tirania (livro IX), Platão termina (livro X), com a proposição de um mito (sobre a arte, o destino e a liberdade).

1. Em que consiste a justiça (livro I e começo do livro II)

Depois de algumas digressões sobre a velhice, Polêmarco sustenta que a justiça consiste em dar a cada um o que lhe é devido, em fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos. Mas, como considerar que alguém é nosso amigo? Poderia o homem justo fazer mal a alguém?

A argumentação apresentada por Trasímaco é radical: a justiça não é nada mais que reforçar o poder dos fortes contra os fracos. Não é isto que fazem os tiranos, com suas leis autoritárias?

A intervenção de Sócrates é sábia: governar é estar a serviço dos governados, como um médico curando os doentes. A justiça é superior à injustiça e é preferível sofrer a injustiça do que praticá-la. Onde se pratica a injustiça, aí está a desunião e a discórdia. Onde houver justiça, aí está a felicidade.

Gláucon e Adimanto contra-argumentam dizendo que todos os homens são gananciosos e querem mais do que seriam merecedores e que assim cumprem as leis por pura conveniência.

2. Os princípios da Justiça (livros II a V)

Diante das teses referidas, Sócrates é levado a argumentar que a justiça tem valor em si mesma, dependendo apenas das condições para o seu exercício. Daí que ela é mais fácil de ser encontrada na atividade pública (na cidade), do que nas pessoas. Só depois vamos transpô-las para a conduta individual.

Então, o primeiro princípio da justiça é a solidariedade social, ou as formas pelas quais a pessoa contribui para o bem estar coletivo, pois este é que tem a prioridade.

Assim sendo, fica ressaltado um segundo princípio, necessário para a manutenção da integridade social: o desprendimento, o dever consciente de pessoas realmente dispostas a prover o bem comum. Daí a necessidade de criar uma classe social distinta das atividades econômicas, a dos guardiões, futuros reis-filósofos que sustentarão a felicidade do Estado.

Para tanto, será necessária a distinção da sociedade em três classes, como são os distintos metais: ouro para os chefes dos guardiões, prata para os próprios guardiões (ou militares) e ferro para os produtores e artesãos. Os guardiões são mantidos pelo Estado e não têm direito à riqueza.

3. A distinção da justiça no indivíduo e no Estado

A principal finalidade da cidade é educar as pessoas e ela não precisa legislar sobre tudo. A cidade é sábia porque é governada por reis-filósofos; a cidade é corajosa, porque garantida por guardiões valentes. Há que haver temperança nas paixões e ela deve ser praticada tanto pelas pessoas como pelos governantes. A justiça consiste em cada um fazer o que deve: o sábio governar, o professor ensinar, o artesão produzir, etc.

A alma humana é composta de três partes: os desejos, a razão (nous) e os impulsos (thymos). Estes são dominantes, em certas ocasiões, superando as contenções racionais (a história de Leôncio e o desejo de ver os cadáveres). A justiça, portanto, consiste na harmonia entre estas três partes, o que a faz aproximar-se da moral.

4. Sócrates e suas três proposições revolucionárias (livro V)

1) Na classe dos guardiões, homens e mulheres são iguais, capazes de exercer as mesmas tarefas.

2) Eles não podem constituir família.

3) Não podem possuir bens; seu poder deriva de seu saber (os reis-filósofos).

5. A racionalidade da Justiça (livros VI e VII)

Cultivar a filosofia é subir numa escala de competência e dignidade, para que ela não seja desvirtuada. O fim da subida é atingir a idéia do Bem, que é superior a da justiça e de todas as outras, por ser o seu fundamento. Contudo, como definir o Bem? Por meio de metáforas, como aquela do sol que nos dá luz e calor.

alegoria da caverna, no começo do livro VII nos fornece a ilustração de como podemos atingir a verdade em nosso conhecimento e em nossas ações: imaginemo-nos presos a uma caverna, de costas para a sua abertura. Nessa condição, só podemos perceber o movimento das sombras do que está acontecendo lá fora. De repente, um de nós livra-se das correntes e sai para o mundo exterior, onde encontra vida, cor, luz e calor. Ao retornar, relata aos prisioneiros o que viu. Inconformados, estes ameaçam matá-lo. Sem outra condição, o liberto cria fantasias e mitos para justificar as aparências, procurando assim poupar a sua vida.

6. A decadência da Cidade (livros VIII e IX)

A cidade ideal degrada-se naturalmente, como tudo o mais. Com o esfriamento das virtudes dos timocratas, com a concentração do poder nas oligarquias, com o individualismo das democracias, o resultado fatal só poderá ser o surgimento da tirania. Esta é a ordem natural da decadência dos regimes políticos, destruídos pelas suas próprias negatividades.

7. Arte, Moral e Filosofia (livro X)

O real possui graus diferenciados de apreciação, cabendo aos artistas, em suas diferentes habilidades, representá-lo. Cada um fica submisso à sua técnica, como se não tivesse escolha para expressar-se diferentemente. Daí a força inelutável do gênio de cada um. Isto afeta igualmente a moral e a filosofia.

JEAN-JACQUES ROUSSEAU – Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens

Dedicatória

Dirigida a todos os cidadãos de Genebra, Rousseau presta uma homenagem à sua Pátria, que oferece a imagem mais aproximada do que pode ser um Estado virtuoso e feliz, democrático, solidamente estabelecido, dotado de magistrados respeitáveis, concitando a todos a conservar essas virtudes.

Prefácio

As desigualdades entre os homens tiveram início com o aparecimento da sociedade. Porém, para superá-las, necessário se torna retornarmos ao ‘homem natural’, aos princípios que constituem a sua ‘lei natural’: preservação de si mesmo e piedade estão na origem de todas as regras que constituem o seu ‘direito natural’, antes que seja preciso intervir sociabilidade e razão (distinguindo entre o que é desejado por Deus e o que é obra dos homens).

Discurso

Existem dois tipos de desigualdades: a natural ou física e a desigualdade moral ou política. O propósito é marcar o momento em que a sociedade, com a desigualdade política, sucede ao ‘estado de natureza’, que, apesar de sua degradação, ainda conserva alguns resquícios, como comprovam as descrições bíblicas.

Primeira Parte: O homem natural

O homem físico: este é bem dotado, solitário, ocioso e vive o momento presente; muito resistente, não conhece o medo e não tem doenças, como o homem civilizado.

O homem metafísico: o que o caracteriza é, primeiramente, a liberdade, pois a razão ele a compartilha com os animais. Porém, será com o instinto do contínuo aperfeiçoamento que ele dirigirá a sua vida, o que está na raiz de todos os seus males. Dessa forma, a razão só se desenvolve a partir da conscientização das necessidades humanas (sensações), oriundas de suas paixões, o que impede que se compreenda bem a passagem do estado de natureza à sociedade.

O homem moral: Do ponto de vista de suas relações com outrem, o homem natural não é sociável. Sem nenhuma noção de bem e de mal, ele é inocente. Suas paixões são moderadas, guiadas pelo princípio da piedade, que atenua os instintos de preservação de si mesmo, contrariamente ao que pensava Hobbes. O desequilíbrio surgirá apenas com o advento da sociedade. Um exemplo disso é dado pelo amor, que no estado de natureza é apenas físico; será apenas com a civilização que ele se tornará fictício, e, portanto, funesto.

Rousseau não deixa de reconhecer que o homem em estado natural é apenas uma ‘história hipotética’, na qual medeia uma distância intransponível  de passagem, do homem natural ao homem social.

Segunda Parte: O homem histórico

Os primórdios: o homem, acossado por dificuldades externas, passou a usar a sua engenhosidade na construção de alguns instrumentos, anzol, arco, o fogo. Ele passa a trabalhar de forma autônoma ou associada, reconhecendo os outros momentaneamente como seus semelhantes. A língua é rudimentar e as nações ainda não existem.

Início da sociedade: marcada como uma ‘primeira revolução’, a construção de abrigos e a constituição das famílias determinam o fim do nomadismo. A linguagem toma características tribais e seta foi uma época de relativa felicidade, com o aparecimento do amor. Os males surgentes serão a vaidade e a comparação.

O ‘estado de guerra’: as descobertas da metalurgia e da agricultura constituirão ‘a grande revolução’. O trabalho da terra vai fazer surgir a propriedade, as desigualdades vão então se acentuar. As usurpações dos ricos e as pilhagens dos pobres levarão ao ‘mais horrível estado de guerra’.

O Estado Social

O pacto de associação: Como em Hobbes, esta guerra de todos contra todos vai tornar necessária a instituição da sociedade e das leis. Os ricos, no propósito de garantir seus privilégios e institucionalizar as desigualdades, vão propor um pacto de associação e auxílio mútuo aos demais (homens grosseiros), que com isto sentem as vantagens, mas não percebem os seus perigos (de uma instituição política): eis o império das leis em toda a face da Terra. Rousseau conclui então que a origem legítima das sociedades não está nem no direito de conquista, nem na união dos fracos, nem na servidão voluntária.

O pacto de governo: não tendo o homem tendência à servidão, a forma de governo ideal é a democracia participativa, na qual os cidadãos não delegam suas prerrogativas de cidadania a pretensos representantes, na qual a verdadeira soberania deve pertencer ao povo (república federativa).

A evolução das formas de governo: a sociedade passou por três etapas: instituição da lei e direito de propriedade, instituição da magistratura e transformação do poder legítimo em poder arbitrário, que geraram os três correspondentes graus de desigualdade: rico e pobre, poderoso e fraco, senhor e escravo. O último termo da desigualdade, o despotismo, conduz os homens a um novo estado natural, onde reina a lei do mais forte; nada então impede a revolta. Por fim, a desigualdade só estará conforme ao direito natural se for proporcional à desigualdade natural.

ARISTÓTELES – Ética a Nicômaco, Livro I

A exposição da ética aristotélica dirigida a seu filho Nicômaco compreende, no Livro I, treze itens cujos temas centrais resumimos:

Item I: Todas nossas ações visam alcançar diferentes tipos de bens, mas como estes variam de acordo com os fins particulares pretendidos, o melhor seria procurar neles o bem em si, distinto das ações.

Item II: Este bem acima de nossos fins é o sumo bem (absoluto). Esta procura é mesmo uma arte suprema, arte mestra, que deve ser procurada não só pelas pessoas, individualmente, mas será muito melhor se for procurada coletivamente, na ordem política da polis (cidade-estado).

Item III: Contudo, as dependências políticas da ética podem torna-la relativa, pela própria complexidade de seus resultados, fazendo mártires os corajosos, assim como doentes os imoderados. Dessa forma, contentemo-nos apenas em obter algumas verdades, das quais os jovens sentem grande dificuldade em alcançar, pois não têm preparo quando se trata de agir.

Item IV: Ora, o objetivo da ética é a obtenção da felicidade (eudemonia), mas esta sofre grande diferença quando tratada pelo vulgo ou pelos sábios, pois o vulgo compara a felicidade ao prazer, riqueza ou ostentação. Contudo, muitos conseguem perceber que acima dos bens imediatos há um bem subsistente e causa da bondade de todos os demais. Para tanto, há dois caminhos: das ações para os princípios ou, vice-versa, dos princípios para as ações, conforme sugeriu Platão. Não obstante, Aristóteles acha que devemos começar pelas ações como são exercidas por nós, o que exige conhecimento e hábito, esclarecimento e boa educação, conforme sintetizou Hesíodo em um de seus poemas.

Item V: Aristóteles elenca três tipos principais de vida : a felicidade vista apenas na fruência de prazeres; segundo, as honrarias e benesses da vida política e, finalmente, a vida contemplativa. No que se refere a vida reduzida à obtenção de prazeres, Aristóteles a considera bestial e escrava; quanto a vida pública, considera a honra como concessão do público ( o que não é bom). Não obstante, há os que consideram a honra como um atestado de bondade, reflexo de suas virtudes pessoais, porem estas variam muito em sua consistência.

Item VI: A preocupação é quanto à ideia do bem universal, na esteira das concepções platônicas e Aristóteles vai contrariá-las, apesar de suas amizades com o Mestre. Assim, começa argumentando que o bem pode ser usado tanto na categoria de substância, qualidade ou relação, o que impediria a sua conceituação como uma ideia comum. Exemplos:

– o bem como substância: Deus
– o bem como qualidade: as virtudes
– o bem como relação: sua utilidade, seu momento apropriado, sua intensidade, etc

Ora, em função dessas diferenças, não pode haver uma única ciência que possa englobar uma ideia de bem universal, como forma abstrata. É verdade que os platônicos procuram diferenciar entre os bens tomados em si mesmos (como referência), dos bens subsidiários, que os corroboram e os preservam. Assim, torna-se possível distinguir o bem em si de seus condicionantes utilitários ou prazerosos. A ideia do bem seria então produto de um denominador comum obtido por via casual ou analógica? Não obstante, se ela existe, torna-se vazia e inatingível pelo homem. Pois o essencial é perceber o bem e sua perfeição nos seus usos práticos.

Item VII: Na variedade de nossas ações, o importante é ter em mente suas finalidades. Porém, como estas estão sempre submetidas a uma perspectiva relativa, nossa mente procura uma finalidade absoluta, que inclua todas as finalidades relativas. Aristóteles diz: ‘chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa’. E prossegue: ‘Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela sempre procurada por si mesma e nunca com vistas em outra coisa’. ‘A felicidade é, portanto, algo absoluto e autossuficiente, sendo também a finalidade da ação’. Ora, no que se refere ao homem em suas atividades, o bem supremo é seu labor intelectual, por ser isto que o distingue de todos os outros animais. Porém, este labor intelectual deverá vir acompanhado de práticas virtuosas.

Item VIII: A diferença entre bens exteriores e bens interiores. A preferência é pelos bens da alma, pois o homem feliz vive bem e age bem. A felicidade ora é comparada com as virtudes, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica, a prosperidade e a honra, etc, e é provável que ela esteja um pouquinho em cada um desses aspectos. Não obstante, a felicidade é uma virtude de ação; e esta ação deve vir sempre acompanhada de prazer e alegria pelo que se faz. A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e seus atributos não se acham separados, como na inscrição de Delos: ‘Das coisas a mais nobre é a mais justa; e a melhor é a saúde; mas a mais doce é alcançar o que amamos’. Não obstante, ela necessita dos bens exteriores.

Item IX: Como atingiremos a felicidade? Pela aprendizagem, pelo hábito, ou por alguma espécie de adestramento, ou mesmo crer que ela seja uma dádiva dos deuses? Por ser a melhor, a felicidade só pode ser dádiva divina. Contudo, poderá ser conquistada também por uma espécie de estudo e diligência, uma prática de vida pública, orientando as pessoas para que sejam boas e capazes de nobres ações. Conclui-se portanto que a felicidade não é um estado natural, mas fica a mercê de superar muitas vicissitudes da vida.

Item X: Não devemos esperar a morte para dizer se fomos felizes ou não, como pensava Solon. Pois apesar dos muitos percalços da vida, um estado de felicidade demanda a superação permanente de tudo que possa contrariá-la. Pois a prática das virtudes é o que mais é duradouro na vida, superando o próprio conhecimento das ciências e nenhum homem feliz pode tornar-se desgraçado, porquanto jamais praticará atos odiosos e vis. E isto está acima do azar ou da fortuna.

Item XI: A desgraça e o infortúnio afeta a vida dos mortos? Na dúvida sobre se os mortos participam de qualquer bem ou mal, temos que concluir que afetariam muito pouco a sua tranquilidade.

Item XII: A felicidade é para ser louvada ou estimada? Os louvores da felicidade estimulam as pessoas a praticarem as virtudes, pelas suas bem-aventuranças. Não obstante, a felicidade, por ser um primeiro princípio, demanda muito mais a estimação e a perfeição de nossos atos bons.

Item XIII: A natureza da virtude é cheia de percalços, pois depende do funcionamento adequado do corpo e da alma. O homem verdadeiramente político é aquele que goza a reputação de haver estudado a virtude acima de todas as coisas, pois com isso contribuirá para que os seus concidadãos sejam bons e obedientes às leis. Ensiná-los a serem comedidos e que eduquem suas incontinências. Pois os conselhos dos pais e dos amigos são úteis para suprir os elementos irracionais de nossa alma.

RENÉ DESCARTES – Meditações Metafísicas: Meditação Primeira e Meditação Segunda

PRIMEIRA MEDITAÇÃO

  1. A ocorrência de falsas afirmações nos conduz naturalmente a um processo de dúvida provisória, até que possamos confirmá-las através da pesquisa e da ciência.
  2. Portanto, a dúvida não precisa ser radical nem abarcar a totalidade das afirmações, bastando que nos atenhamos apenas aos princípios, ou aquilo que as fundamenta.
  3. Ora, tudo que aprendi até agora foi através dos sentidos e como estes geralmente nos enganam, é prudente termos cautela com nossas observações.
  4. Não obstante, há coisas indubitáveis, como o fato de estar aqui e agora, sentado, escrevendo. Contudo, não devemos nos esquecer dos sonhos dos delirantes, que estão a todo o momento imaginando coisas irreais.
  5. Porém, como humano, estou, a todo momento, confundindo meus sonhos com a realidade, o que altera minha percepção do que possa ser real.
  6. Ora, mesmo supondo que estamos adormecidos, não podemos deixar de reconhecer que se assemelham a quadros e pinturas, criadas a partir de coisas semelhantes, porém reais, como minhas mãos, os objetos ou as cores com que são pintadas.
  7. No limite, mesmo duvidando da realidade de minhas mãos, há coisas que podemos considerar indubitáveis, como a corporeidade (res extensa), sua quantidade, sua duração, etc.
  8. Dessa forma, mesmo que tenhamos sérias dúvidas com relação à astrofísica ou a medicina, há conhecimentos na geometria e na aritmética que são indubitáveis, como a soma de três mais dois ou o quadrado que deve ter sempre quatro lados.
  9. Contudo, apesar de meus enganos, tenho a convicção de que a veracidade das coisas repousa em Deus, que sendo todo-poderoso, poderia permitir-se me enganar. Porém, sendo justo e bom, jamais o permitiria.
  10. Muitos consideram a ideia de Deus uma fábula e temos de respeitar suas opiniões, pois não há nada neste mundo que não possa ser colocado em dúvida.
  11. Não obstante, há muitas convicções arraigadas em meu ser que me predispõem a segui-las, e este é o caminho que devo seguir, por prudência e a indicação de que são mais verdadeiros de que minha dúvida radical.
  12. Mesmo supondo a existência, não de um Deus bondoso, mas de um gênio maligno constantemente a enganar-me, chego à conclusão de tal hipótese não me conduz a nenhum conhecimento verdadeiro, devendo, pois, abandoná-lo como inútil.
  13. Contudo, o caminho para a obtenção da verdade é árduo e espinhoso, como o escravo que descobre a liberdade, mas não sabe o que fazer com ela.

SEGUNDA MEDITAÇÃO

  1. Descartes se esforça para superar as dúvidas que abalaram suas certezas, mas não desiste.
  2. Como Arquimedes, que move o globo terrestre a partir de um único ponto, Descartes deseja encontrar também uma única coisa que seja indubitavelmente verdadeira.
  3. Supondo que tudo seja falso, o que então poderia ainda ser considerado verdadeiro?
  4. Mesmo supondo um espírito enganador, posso concluir que a constatação: eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira.
  5. Contudo, não sei bem o que sou, o que demanda portanto alguma cautela em fixar minha essência.
  6. Pensei-me ser um homem, um animal racional. No entanto, tal desdobramento se torna polêmico, ao ter de me certificar o que é animal e o que é racional. Assim, fui conduzido à ideia de corpo, como algo fundamental, por ser dotado de extensão. Contudo, acho estranho que meu corpo possa ser dotado de características especiais como mover-se, sentir ou pensar.
  7. Se o meu sentir e meu pensar dependem de meu corpo, só uma coisa podemos considerar como independente: a expressão eu sou, eu existo; uma coisa que pensa, fazendo de meu pensamento a verdadeira natureza de meu ser.
  8. Esta conclusão não depende nem da imaginação nem de um raciocínio lógico, por ser evidente por si mesmo.
  9. Mas o que sou, portanto? Uma coisa que pensa, isto é, que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Estas reações são independentes de minha capacidade de pensar.
  10. Apesar de nossas reações psíquicas serem mais fáceis de conhecer do que isto que as fundamenta, nosso esforço é no sentido de caracterizá-lo.
  11. Pois é pela distinção de suas características que as podemos conhecer com precisão.
  12. Não obstante, o conceito real de alguma coisa só pode ser dado por suas condições genéricas de extensão, flexibilidade e mutabilidade, que são coisas abstratas.
  13. Ora, tais características só podem ser obtidas através do entendimento, uma potencialidade própria do conhecimento espiritual.
  14. São, pois, meus julgamentos abstratos que dão consistência às coisas, pelo fato de que meus sentidos me enganam.
  15. Contudo, não podemos descrer que possa haver um conhecimento pelo senso comum, por intuição imediata.
  16. Na verdade, é o espírito que, em confronto com as coisas, toma conhecimento de sua autonomia (sou eu que penso).
  17. O mesmo ocorre com o conhecimento de mim mesmo, que se sente diferente de seus atos.
  18. O espírito é, pois, evidente por si mesmo, e sua autonomia se faz a custa de minha diferença de tudo o mais.

FRIEDRICH NIETZSCHE – Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral

1) Fábula: a invenção do conhecimento ocorre em um astro perdido na imensidão do Universo. Não obstante, tal fenômeno dura pouco tempo no correr da evolução, demonstrando quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz , quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. O ser humano é então tomado de orgulho, e o filósofo, como o mais orgulhoso dos homens, sente-se possuidor do infinito.

2) O intelecto, meio de afirmação dos fracos, é uma arte do disfarce, na qual o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, uma fonte de vaidade mascarada como verdade. No entanto, há valentes que despertam desses sonhos ilusórios e conscientes de estarem sobre o dorso de um tigre, vislumbram o verdadeiro impulso ao bom-senso.

3) Este indivíduo, pela necessidade de convivência, procura um estado de paz oposto à guerra de todos contra todos, o que representaria o primeiro passo para atingir a enigmática verdade. A contingência das coisas e a linguagem serão dois instrumentos valiosos para superar o engodo e a mentira, pois o importante é superar o comodismo e o interesse das pessoas em manterem as suas mentiras.

4) É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades? O que é uma palavra? Não tenhamos ilusões, são puras convenções arbitrárias do que sentimos em nosso interior: um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Por isso, elas permanecem longe da Verdade.

5) As palavras se transformam em conceitos, porém qualquer conceito nasce por igualação do não-igual, por seu caráter abstrato, genérico. Assim, o conceito de ‘honestidade’ se depreende de casos fortuitos de ação e não possui, por isso, nenhuma consistência ontológica, como coisa em si.

6) O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de percepções ilusórias, sem nenhuma utilidade, como moedas sem validade. Mas, como ainda continuamos a perseguir o que seja a verdade? Ela não seria apenas nossa teimosia em sustentar conveniências pessoais ou coletivas?

7) Chegou o momento em que é preciso distinguir o conhecimento racional (por conceitos), do conhecimento intuitivo (por percepção direta). Enquanto o primeiro resulta autoritário e dominador, o segundo se ilumina com a contemplação e o silêncio…

8) É assim que o conhecimento intuitivo se manifesta através do mito e da arte. Os povos antigos viviam encantados por ambos, o que supria com vantagem a sua ignorância das ciências racionais. Guiar-nos por intuições é o caminho para superarmos o domínio dos conceitos, o esforço para atingirmos a verdade em si mesma. Enquanto o homem guiado por conceitos e abstrações, através destes, apenas se defende da infelicidade (pelos paradoxos que eles criam), ‘o homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo, já de suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e torrencial contentamento, entusiasmo, redenção’.